Lentamente vai nascendo em mim uma irritação em relação aos blogs. Com a sensação crescente de que há qualquer coisa de errado, de batota, nesta forma de comunicação.

Deixem-me ir à minha infância para me ajudar a mim próprio a definir-me.

No princípio havia a tabuada. No liceu, professores como o Palma Fernandes, ensinavam cálculo mental. (Nada mais simples do que multiplicar um número por 25: multiplica-se por 100 e divide-se por 4). Hoje vai-se a um café ou uma tabacaria, compra-se um café e um bolo, um jornal e um maço de tabaco e, quem nos atende, tem de fazer a soma na registadora para saber qual o total da despesa. Mesmo que tenham aprendido a tabuada, não houve ginástica, não houve rotina de esforço continuado, a arte de calcular de cabeça perdeu-se.

Aprendi também a desenhar letra e como espacejar as letras de uma palavra. Surgiram primeiro as letras de decalque da Mecanorma, depois os tipos de letra nos computadores e hoje poucos art directors sabem que, no cabeçalho de uma notícia ou de um anúncio, o espacejamento entre letras deve ser ajustado. (Experimentem imprimir BAAL e VALE em maiúsculas no tamanho 30 ou 40 pontos. O espaço entre o V e o A tem de ser aumentado e o espaço entre os dois AA tem de ser reduzido, senão o par VA fica muito junto e o AA muito separado). Perdeu-se uma arte que resulta de esforço e de técnica para ser assimilada. Sobrevive sob o nome de lettering, uma bizarria de designers mais profissionais.

Os blogs são outro desastre nessa mesma linha de enfraquecimento de uma arte por ausência de esforço e de perda de “ginástica”.

No meu tempo (raio de expressão, sinto-me um velhinho de dedo encarquilhado em riste), quem escrevia alguma coisa e a queria comunicar ao público, tinha de procurar um editor. Tinha de escolher quem se ocupasse de temas relacionados com o que escrevia e sujeitar-se aos comentários desse editor e, eventualmente, dos leitores anónimos.

Com os blogs é tudo mais fácil. Pois, o problema é esse. “Tenho um blog, vai visitá-lo e envia os teus comentários”. Os amigos e a família não são feitos para comentar tentativas literárias, são feitos para serem família e amigos. E nenhum fará uma crítica fria e profissional como um editor a quem editar ou não editar aquilo é uma decisão que sentirá na carteira.

Sim, já havia poetas e contistas com edições de autor. Mas era uma decisão a ser bem pensada, porque custava dinheiro e dava trabalho ter de visitar livrarias a pedir para terem alguns exemplares à comissão. Agora escreve-se um texto num blog e sentimos a alma reconfortada porque amigos e conhecidos de outros blogs escrevem-nos a comentar os nossos textos.

É batota, minha gente. O mundo real, lá fora, é mais duro, filhota. Não deixes que a prática dos blogs vá enfraquecer a excelente musculatura que agora tens.

Um abraço a todos.

Artur Tomé

3 thoughts on “Da tabuada aos blogs

  1. É verdade, tem razão. Nunca tinha pensado nisto desse ponto de vista. Mas veja também as vantagens: no seu tempo – no meu tempo também – as dificuldades serviam de exercício para a qualidade, certo. Mas também eram muitas vezes obstáculos inultrapassáveis a quem merecia o privilégio da obra publicada, impedindo-a de forma, muitas vezes, arbitrária. Na altura não seriam os amigos e a família a fazer a diferença, mas a cunha, o “já ter obra publicada”, o gosto pessoal – e como tal discutível – de um qualquer funcionário da editora ou do jornal.É claro que a abertura do mundo blog traz para os nossos monitores muita coisa que nunca deveria ter visto a luz do dia, muito desabafo que ficaria melhor trancado no tradicional diário de cadeado. Mas alargou o espaço de discussão, libertou a opinião (atente-se ao que se passa neste país que temos, neste momento) e permitiu a muito escritor principiante e incipiente ter um certo retorno daquilo que escreve. Não acho que seja batota, antes um outro tipo de crivo. Mais fluido talvez, mas mais alargado. E aberto a qualquer um. Não penso que os blogues vão diminuir a edição. Não. Vão libertar os editores de muito manuscrito que nunca deveria ter saído da gaveta (saíram para os blogues, está bem)e vão permitir que aqueles que querem mesmo ser editados e que têm realmente qualidade para o ser sejam avaliados de uma outra maneira.E abriram espaços de discussão e intervenção acessíveis a todos. Nós estamos aqui, certo? E veja que já muitos jornais publicam diariamente excertos de blogues vários.Dito isto, concordo consigo ainda em mais um aspecto: é preciso manter a forma, desenvolver o exercício para que a produção seja boa. Por isso, quem quer escrever não deve – não pode – instalar-se no que é a aparente facilidade do blog. Aí, não há discussão.J.

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  2. Concordo que o facto de, hoje em dia, haver mais facilidade em levar os nossos textos a público leve a um enfraquecimento na qualidade daquilo que sai cá para fora. Concordo que haja um certo nível de narcisismo no criar um blog e andar a publicitá-lo no espaço para comentários dos blogs alheios… e na ânsia de que alguém dê o seu parecer aos posts publicados.Mas.Como tudo, há que ter cuidado com as generalizações. Da parte que me toca, o que adoro nos blogs é o debate de ideias: escreve-se sobre um assunto e os leitores dizem de sua justiça gerando-se, até, por vezes, discussões bastantes interessantes. Se fico triste quando vejo “0 comments” num post que já tem uns dias é porque o encaro um pouco como ir ter com um grupo de pessoas, falar sobre assunto X e ninguém me ligar nenhuma… Mas não levo a peito :)Por outro lado, para aqueles que de facto sabem escrever e têm algo de substancial para mostrar, há no blog uma óptima oportunidade não só para se fazerem ouvir como para exercitarem, precisamente, a escrita, criatividade e argumentação.Até a Matemática se aprende melhor através de exercícos. Até com calculadora é preciso agilidade mental para saber que conta é que tem que ser efectuada.(Devo frisar que a primeira coisa que me disseste hoje de manhã foi: “ainda não comentaste o meu texto…” :P)

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